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quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

A MALDIÇÃO do Gato Preto

Todos os dias passava pela rua e via aquela menina, olhando pela vidraça, abraçada ao gato preto. Todos desviavam do gatinho, inofensivo e alienado aos pensamentos dos humanos que o avistavam. Estranho supor que um pequeno animal possa estar carregado de tamanho poder de destruição. Até por que era o amigo inseparável daquela menina. Ela sim, parecia estranha, com um jeito de olhar incisivo, quase que desvendando nossas almas. Ela sempre ficava protegida por uma janela e parecia que tinha um olhar sofrido, indícios que tentávamos descobrir olhando sua mãe, uma neurótica por limpeza e seu pai, passivo e comandado pela mulher.
                Um dos primeiros povos a ter superstição acerca de gatos foram os Egípcios, que tinham um deus com sua forma física, Bast. Em honra a esta divindade, além de cuidar dos seus inúmeros gatos como membros da família ainda os mumificavam para que lhes encontrasse no mundo dos mortos. Mas não era este o desejo daquela menina. Era apenas abraçar seu gato preto e olhar pela janela. O gato, olhava, dormia, brincava, sem sequer supor que de divinos passaram a ser uma desgraça na idade média, onde a superpopulação dos felinos passou a travar uma batalha com os humanos. Devido às guerras ditas como santas, os gatos passaram a ser perseguidos e aliados à bruxaria, misticismo e magia.

                Moravam em uma casa antiga, reformada, que mantinha arquitetura em estilo gótico, de propriedade de uma família de Santa Cruz do Sul, Rio Grande do Sul, que foi colonizada por alemães. A cidade também ficou conhecida por fenômenos ufológicos, ainda sem explicação. Seu antigo dono era um  pedreiro que teria trabalhado entre 1928 e 1936 na construção da Catedral de São João Batista, que também tem o estilo gótico. Após inúmeras modificações feitas pelos herdeiros ainda mantinha características da época. Uma das colunas ficava do lado da janela onde a menina e o gato observavam a rua. Mas tamanha tranqüilidade um dia foi abalada por uma cena chocante.
Exatamente naquela manhã, o casal, pai da menina da janela, do gato preto, discutia na porta de casa. Fazia da rua seu teatro ao ar livre para que os vizinhos pudessem ver como era a brutalidade daquela mulher em relação ao marido. O homem ouvia tudo de forma passiva, de cabeça baixa, humilhado com o vocabulário de baixo calão variado que a mulher expressava. A filha do casal olhava tudo pela janela do quarto, junto do gato que pela primeira vez expressava atenção a algum fato em seu território. Tentávamos não olhar, mas era inevitavel, pois os gritos da mulher eram atordoantes. O marido, em silêncio e humilhado, dava um passo de cada vez, bem devagar indo embora do local, possivelmente para fugir do ridículo que a situação o obrigava. A mulher continuava gritando, xingando e jogando pragas. Pensei que se a mulher fosse bruxa, o gato preto estava ali por um bom motivo.
Veio uma semana, e ao passarmos pelo mesmo local, em direção à estação para ir trabalhar, uma grande movimentação estava em frente à casa daquela família no mínimo estranha. Ambulâncias, carros de polícia, área isolada e a notícia de que a mulher tinha sido encontrada morta, com uma faca no peito. Não sabíamos se olhávamos o trabalho da perícia ou se prestávamos atenção a menina que continuava com o gato preto no colo, porém sendo atendida por assistentes sociais em uma das ambulâncias. Ela estava inerte a tudo o que acontecia e apenas conversava baixinho com seu gato que recebia carinho de suas delicadas mãos. Para os dois, estava tudo na mais perfeita ordem. O pai da menina continuava de cabeça baixa, conversando com um policial, respondendo calmamente as perguntas. Outra equipe removia o corpo da mulher que estava coberto. Continuamos aquele dia.
Cerca de dois anos se passaram e outra mulher, agora mais zelosa com o marido, cuidava da casa, que agora tinha outra cor, flores no jardim e a menina agora brincava na entrada da casa, com o gato preto. Pela primeira vez em anos, conseguíamos ver a menina fora da janela de vidro. O marido saindo para se despedir, a então madrasta cuidando com carinho e atenção inéditos naquele local de tudo e todos. Meses se passam e a mesma cena com ambulâncias, polícia e área isolada se repete à frente da casa da menina do gato preto. Só que desta vez o homem é que tinha morrido. Havia caído do telhado após tentar arrumar a antena de Tv. Ao lado da ambulância a nova mulher desesperada chorava e era acolhida pelos policiais. A menina continuava sentada, desta vez na porta da casa, mantinha o olhar longe, como se não estivesse ali, totalmente envolvida com seu gato preto.

Meses se passaram e a mulher, então madrasta da menina, se envolvem com um outro homem e coloca a menina para ser sua pequena escrava branca. Ela tinha que lavar a calçada, colocar o lixo, pendurar roupas no varal, lavar o carro que agora ficava parado na porta da casa enquanto a mulher ficava atualizando as fofocas com as vizinhas. Tinha recebido uma boa pensão e a juventude e relativa beleza a ajudavam. A cena era comum: ver a mulher ordenando os serviços a menina e de longe conferindo e colocando defeitos em tudo, até a hora que o marido chegava. O casal teve um filho, que era o rei da casa, enquanto a menina só tinha carinho do gato preto que fielmente a acompanhava. Agora ela ficava a maior parte do tempo sentada na porta de casa. Olhar melancólico, muito mais triste que aquele que tinha alguns anos.
Durante uma madrugada, todos os vizinhos foram acordados por uma grande movimentação, barulho de sirenes, gente chorando, enfim, foi impossível ficar dentro de casa naquela noite. Ao sair para ver o que estava acontecendo a notícia se espalhou rápido: um incêndio estava consumindo toda a velha casa em estilo gótico. Apesar de todos os esforços o corpo de bombeiros pouco pode fazer devido aos materiais altamente combustíveis do imóvel que rapidamente foram suficientes para destruir o imóvel. Cena parecida com a que tinha visto anteriormente, porém com muito mais ambulância, policiais e agora bombeiros e a menina, agora uma adolescente, segurando seu gato preto e olhando com semblante calmo e tudo o que acontecia.
Em seguida os corpos do casal eram retirados de dentro da casa. Havia um rumor de que estavam jantando a luz de velas e que ao se distraírem as chamas tomaram conta de tudo. Por milagre o menino que devia ter dois anos tinha se salvado graças ao cômodo da casa e à ajuda da irmã, que o retirou antes de toda a tragédia. Agora, órfã de pai e mãe, seguiam a menina, seu irmão e o gato preto. Nuca mais vimos a menina e seu irmão, apenas o gato preto continuava rondando a casa, como é costume dos felinos. Fizeram um tapume para cercar o terreno. A construção, ou o que sobrou dela continua no mesmo lugar.

O escritor Allan Poe – famoso escritor, poeta, romancista, crítico literário e editor, nascido em Boston, em 1809, e falecido em Baltimore, com quarenta anos de idade, é autor de mais de oitenta obras, entre livros e contos – e possui um em especial : “O Gato Preto”, no qual liga o animal a uma série de acontecimentos sobrenaturais. Depois de acompanhar esta família por todos estes acontecimentos, impossível pensar duas vezes antes de cruzar com um gato preto pela rua. Prefiro crer que um gato preto é apenas um belo animal com todas as características que fazem desta espécie atraente e amada por muitas pessoas. Ou não.