sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Violência que devasta famílias Para registrar vazios deixados pelas perdas, jornalista realiza mostra com fotos de vítimas e seus parentes antes e depois das tragédias urbanas


Geraldo Carnaúba, 82 anos, chega na fazenda e é recebido com um beijo pela filha Adriana, engenheira de 48 anos. Também abraça a neta Vitória, 19, que cursa Faculdade de Medicina. Teodora, outra neta de 17, vai prestar vestibular no final de 2013. Já o pai das meninas, Júlio César, 51, prospera no ramo da minhocultura. Na mesa do almoço, a bacalhoada feita pela mulher Delizete, 78, especialidade dela na cozinha. A cena, tão corriqueira para muitas famílias, só existe no imaginário do aposentado. Privado do sonho de envelhecer ao lado dos entes queridos, ele teve a única filha, duas netas, genro e uma tia arrancados abruptamente do seu convívio em uma manhã de 1996. Os cinco foram mortos em acidente de trânsito provocado por um motorista que disputava com outro veículo um pega na MG-126, o conhecido "pega de Mar de Espanha". Hoje, 17 anos depois do desastre, Geraldo é o único morador de um pequeno imóvel alugado no centro de Bicas. Sua solidão é agravada pelo falecimento da esposa há um ano, vítima de câncer. Assim como ele, milhares de famílias arrastam a dor da perda precoce provocada por causas externas. 
Para registrar o vazio deixado por essas mortes, a Tribuna contou com a ajuda da jornalista Renata Meffe. Em maio deste ano, ela enviou mensagem para a redação com suas impressões a respeito da série "Até quando?", cujas matérias foram publicadas pelo jornal em dezembro de 2012 com a intenção de mostrar os rostos por trás dos números de homicídios. A história de Stela, a doméstica que ainda pagava a prestação do tênis do filho assassinado aos 14 anos, despertou em Renata a vontade de desenvolver um projeto fotográfico capaz de dar visibilidade aos casos que ela chamou de "emblemáticos". A jornalista buscou inspiração no trabalho do fotógrafo argentino Gustavo Germano, autor da mostra "Ausências", exibida este ano no Brasil. Germano tornou-se mundialmente conhecido por revelar, através de fotografias, a dor das famílias atingidas pelo assassinato e desaparecimento de 30 mil pessoas durante a ditadura militar argentina. A família de Germano, que nasceu em Entre Rios, engrossa o número, já que o irmão do fotógrafo está entre os desaparecidos daquele país.
De acordo com o blog que hospeda o trabalho do fotógrafo, a mostra "Ausências" revela cenas dessas famílias a partir de uma lacuna temporal de 30 anos. Na primeira imagem, famílias reunidas. Já na segunda, feita no mesmo local da outra e com os mesmos elementos, estão todos de volta, exceto aqueles cujo destino até hoje é uma incógnita para os argentinos. Germano conseguiu captar, em cada registro, a dor dos que ficaram à espera, sem qualquer possibilidade do encontro ou luto. 

Série de fotos
Diante da ideia de Germano, Renata se propôs a fazer uma série de fotos de pessoas que perderam seus jovens, a partir de imagens que remetessem a fotografias prévias desses núcleos familiares, agora reproduzidas sem o ente que foi vítima da violência. "A intenção é aproveitar o poder simbólico da fotografia para lançar luz sobre esse vazio", explicou a jornalista. 
A iniciativa de Renata, que ao lado do marido, Carlos Velázquez, foi agraciada com o prêmio Funalfa de fotografia, deu origem à transformação do projeto fotográfico em reportagem. "Espero que as pessoas sintam uma empatia com as imagens e possam se colocar no lugar de cada uma dessas famílias. Que as fotos nos ajudem a refletir: que o tipo de sociedade nós estamos construindo?" As entrevistas publicadas hoje vão além do momento da perda, tantas vezes revelado em forma de notícia, para se falar no depois, em como cada familiar tem sobrevivido à guerra urbana que transforma civis em alvos.

Dificuldade de encontrar sentido para a vida

Regina Helena da Silva, 42 anos, passa os dias na janela do apartamento localizado no Bairro Vitorino Braga. E, apesar de olhar para o lado de fora, ela nada consegue enxergar. O tempo parou para a cozinheira há pouco mais de sete meses,  precisamente no dia 16 de janeiro de 2013, quando ela enterrou o filho Rúsivel Silva Costa. Em setembro de 2012, o jovem foi brutalmente espancado, quando saía de um baile funk e acabou sendo "enterrado vivo". Foi encontrado pela equipe de socorro nu, coberto de papelão, como se os autores da violência quisessem cobrir o corpo que eles já imaginavam sem vida. Mas o fim não foi aquele. O rapaz lutou por quase cinco meses na UTI do HPS. Entubado, não respondia a estímulos. Inerte, na cama, parecia um corpo sem alma, preso às sequelas da agressão desmedida. Foi nesse estado vegetativo que ele completou, no hospital, 18 anos. Treze dias depois faleceu. Resistiu a todos os chutes que sofreu na cabeça, mas não conseguiu superar o quadro infeccioso. 
A morte de Rúsivel tirou as forças de sua mãe, Regina. Antes economicamente ativa, a cozinheira é hoje uma beneficiária do INSS. Sobrevive, aos 42 anos, com os parcos recursos do auxílio-doença, que não são capazes de manter o padrão anterior. Só se levanta da cama após ingerir diversos comprimidos para depressão e outras doenças oportunistas. Diz sentir-se morta também. "Não saio mais, não aguento cuidar da casa. Fico na janela esperando ele voltar. Às vezes, ouço a porta abrir. Quando beijei meu filho pela última vez, ele estava em coma. Saí do hospital e disse: 'mamãe te ama'. Nunca mais vou poder me despedir ", chora Regina. Talia Tavares, 15 anos, irmã mais nova de Rúsivel, lamenta. "Sinto falta da mãe que ela era. A gente ria junto e até enfrentava as tristezas, mas, diferente de agora, os problemas eram passageiros."
A psicóloga do Hospital das Clínicas de Porto Alegre (RS), Carla Dalbosco, autora de estudo clínico de famílias em sofrimento provocado pela morte violenta de jovens, explica que muitos parentes passam a ter problemas psicológicos, a sentir medo, vazio e a alimentar ideias suicidas. "Quando os pais morrem, geralmente perde-se o passado. Mas quando os filhos morrem, perde-se o futuro. A maioria das famílias, principalmente as mães, tem uma grande dificuldade em encontrar um novo sentido, e acabam vivendo um luto eterno. Os filhos que ficam, muitas vezes, se expõem a outras situações de violência, seja pela busca da vingança ou por se sentirem paralisados em seu projeto de vida. A falta de celeridade dos processos criminais também causa prejuízos emocionais."

'A morte de um filho é o assassinato de toda a família'

O tempo foi incapaz de aplacar a saudade que a costureira Darcy Garcia Ferreira, 62 anos, sente do filho Leonardo, 25, assassinado a facadas em 2000, quando tentava separar uma briga. Mas os anos de ausência conseguiram fazê-la enxergar que não se pode desistir de mudar a realidade. "Diante das perdas, é preciso que a gente tenha força para amar e lutar por um mundo melhor. Não odeio, porque sei que a violência causa muito sofrimento", afirma a mãe de outros dois filhos. 
O discurso de Darcy é entremeado de dor, mas ela se esforça para falar sobre a necessidade de construção de uma cultura de paz, já que conhece o poder de destruição de uma morte precoce. Quando Leonardo morreu, estava noivo, trabalhava e experimentava o sabor de novas conquistas profissionais. Era o filho carinhoso e responsável com o qual as mães sonham. Um passeio na cachoeira de Chácara, em 21 de abril, mudou tudo. O retorno da viagem estava previsto para às 13h, mas às 17h o rapaz ainda não havia chegado em Juiz de Fora. Como estava de carona, não pôde deixar o local no momento pretendido, tendo que aguardar os amigos. No final da tarde, porém, uma confusão foi iniciada. O rapaz tentou apartar. Foi esfaqueado no peito e, nas cinco horas seguintes, teve quatro paradas cardíacas. Darcy padeceu. Perdeu 31kg. Ainda assim, insistiu em ficar frente a frente com o homem que matou Leonardo. Ouviu dele um pedido de perdão e a confissão de arrependimento por ter provocado a morte de alguém que sequer conhecia. "Nunca desejei a morte do assassino do meu filho, porque isso não mudaria a minha perda. Lamento, porém, a existência de leis que não garantem justiça às vítimas." Condenado a sete anos, o autor do homicídio cumpriu apenas um em regime fechado. "A morte de um ente querido é o assassinato de toda a família. Eu também fui assassinada. A diferença é que continuo viva", desabafou Darcy.

Linchamento

O porteiro Evandro Corrêa Borges, 32 anos, não teve tempo de despedir-se do irmão. Os dois estavam rompidos, quando ele recebeu a notícia do falecimento de Tiago, em 2006, aos 21 anos. O crack afastou Tiago da casa que eles herdaram do pai no Bairro Santa Efigênia. Primeiro, a família de três filhos despediu-se da mãe, Maria das Graças, em 1996, merendeira da rede municipal acometida por doença. Em 2001, foi a vez do pai Acácio, um ex-combatente da 2ª Guerra, que morreu de complicações da idade. Restaram os filhos, dois homens e uma mulher, e a vontade de seguir sendo uma família. Evandro tornou-se responsável pelos irmãos mais novos, mas viu Tiago ser consumido pelo vício. Tentou ajudá-lo, sem sucesso. As brigas constantes afastaram o jovem de casa e tornaram ainda mais distante a harmonia de um tempo em que os almoços de domingo eram barulhentos e saborosos, preparados pelas mãos da merendeira.
Evandro até tentou reaproximar-se de Tiago, que recusou a chance de voltar. Sem dinheiro para manter a dependência, o rapaz entrou em uma casa para roubar e foi flagrado pelos moradores. A polícia, porém, não foi acionada. Os vizinhos do imóvel invadido anteciparam-se ao julgamento e determinaram a sentença: linchamento. Tiago morreu após ser espancado, e nem sua condição física esquálida o poupou dos golpes. O porteiro foi chamado ao HPS. Quando chegou na unidade, o corpo de Tiago já estava na maca. "Não tive tempo de dizer que o amava."

Velhice marcada pela solidão

Dezessete anos depois do desastre que matou sua família, Geraldo Carnaúba, 82, evita ir à Fazenda Santa Clara, em Maripá de Minas, onde morava. Lá está tudo como deixado no feriado de 5 de abril de 1996, uma Sexta-feira da Paixão, quando os Carnaúba se reuniriam para um almoço. Na cozinha da casa, a matriarca Delizete cozinhava bacalhau. O tempo de preparo seria o suficiente para que a filha Adriana, 31, levasse Teodora, de apenas 7 meses, para uma consulta médica em Matias Barbosa. Júlio, o marido, as acompanharia. O casal resolveu levar com eles a filha mais velha, Victória, 2 anos. Tia Belinha, 93, que não perdia a chance de andar de carro, ofereceu-se para ir de companhia. 
As horas se passaram, o prato predileto ficou pronto, mas ninguém apareceu. O telefone da fazenda começou a tocar. Do outro lado da linha, parentes já sabiam do ocorrido, mas faltava coragem para dar a notícia. O carro de Adriana foi atingido de frente pela Blazer dirigida em alta velocidade pelo industrial Ismael Loth, cujo carro era seguido pelo do médico Ademar Cardoso. Os cinco ocupantes do Fusca morreram no local: Júlio enforcado pela porta do carro que dirigia. Teodora, após ser lançada contra o barranco. Victória perdeu parte da face. Adriana teve o pescoço quebrado. Já o corpo da idosa foi encontrado a mais de 30 metros do ponto da batida. Os dois responsáveis pelo acidente continuam interpondo recursos na Justiça. "Esse processo criminal se transformou em amarga tortura, quando meus mortos morrem todos os dias", escreveu Delizete cinco anos antes de morrer.
O capítulo seguinte à tragédia é o silêncio. "Não aguento entrar na fazenda e sentir o vazio que tomou conta dela. Não há mais o barulho de menina chorando, dos cachorros latindo, das discussões de família, do movimento de gente. Sinto uma solidão que não tenho como explicar. Hoje, quando olho, não vejo nada parecido com os meus sonhos. Desejava viver na fazenda vendo minhas netas crescerem. Mas olha o que me restou. Quando saio na rua e encontro os avôs puxando os meninos pela mão, pergunto: e eu?"

Anos potenciais de vida perdidos

Levantamento realizado com exclusividade pela Subsecretaria de Vigilância em Saúde de Juiz de Fora, a pedido da Tribuna, dá a dimensão do tamanho dessa tragédia. Só no ano passado, a cidade perdeu uma média de 43 anos de vida para cada uma das ocorrências de homicídio. O indicador dos Anos Potenciais de Vida Perdidos (APVP) estima o tempo que a pessoa deveria ter vivido e, para ser calculado, leva em conta, entre outros fatores, a expectativa de vida ao nascer. Como a maioria das 99 vítimas de homicídio em Juiz de Fora no ano passado era jovem, 54 delas tinham entre 13 e 25 anos, os anos não vividos elevaram a média, prejuízo emocional e econômico muito difícil de ser dimensionado. O óbito de uma mulher de 78 anos, vítima de latrocínio, foi o único não contabilizado, pois o APVP estabelece a idade limite de 70 anos.
Estudos sobre o tema no país apontam que a mortalidade precoce é um parâmetro importante para medir as condições de saúde de uma população, representando um instrumento útil para o planejamento e para a definição de prioridades na área da saúde. O monitoramento é fundamental para avaliar, por exemplo, programas de intervenção e identificar os grupos populacionais que se encontram sob o maior risco. 
A subsecretária de Vigilância em Saúde, Glênia Campos, admitiu que os dados encontrados representam um alerta. "O indicador mostra que precisamos mudar as políticas de saúde e que essa questão tem que ser pensada de maneira ampla, para descobrirmos o foco do problema e atuarmos sobre ele por meio de políticas públicas."
A psicóloga Carla Dalbosco reforça a necessidade de um olhar conjunto sobre a questão. "Essa violência afeta a todos nós,  sendo difícil pensar em uma solução única. Além de dar visibilidade ao problema, é necessário romper esse ciclo através de políticas públicas voltadas para a juventude. Há a necessidade de promover desde o acesso a educação, saúde e bens culturais, até a construção da justiça e a aposta em projetos sociais que ajudem a dar um novo significado de vida. Tudo isso aliado a uma política de acolhimento dessas famílias." 

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